quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Mas a memória não me deixa mais amar, compreendes? Tudo termina e fica muito para memorizar. Será possível que nada te desmancha, será que não és capaz de te deitares aqui comigo, sôbre a colina? Calada. Vem, gazela fina de olhinhos côr de maravilha, vem.
(p. 43)

Goi, goi, pai coração de boi, pão pão Joana de Ruão, goi, goi, o pai não sabe o que dentro de mim é, eu sou três, perfeito querubim com o buraco da mãe e o mais comprido do pai, eu sou criança de muito entendimento, de muita verdade, de muita poesia, é preciso mastigar o que o pai escreve, mastigar e engolir porque o que vale é a poesia e não tratados, fantasmagorias do pai, o que vale é a planície doirada, o vale côr de beterraba, o que vale é o três dentro de mim, noiteaurora, pombamora, branco e vermelho dentro de mim, pai tristeza que não me quer querubim, mãe encantada do pai e por isso afligida e surprêsa em relação a mim, goi goi alecrim, goi goi espigão, goi goi roseiral-mirim.

(p. 45)

Senhores, eis aqui, um nada, um merda neste tempo de luta, enquanto nos despimos, enquanto caminhamos pelas ruas carregando no peito um grito enorme, enquanto nos matam, sim porque nos matam a cada dia, um merda escreve sôbre o que o angustia, e é por causa dêsses merdas, dêsses subjetivos do baralho, dêsses que lutam pela própria tripa, essa tripa de vidro delicada, que nós estamos aqui mas chega, chega, morte à palavra dêsses anêmicos do século, êsses enrolados que se dizem com Deus, Deus é esse ferro frio agora na tua mão, quente ao peito do teu inimigo, Deus é essa bala, olhem bem, Deus é um fogo que vai queimar essas gargantas brancas, Deus é tu mesmo, homem, tu é que vais dispor do outro que te engole, e quem é que te engole, homem?

(p. 55)

Escrever um livro é como pegar na enxada, e se você não tem uma excelente reserva de energia, você não consegue mais do que algumas páginas, isto é, mais do que dois ou três golpes de enxada. Por isso, nessa hora de escrever é preciso matar certas doçuras, é preciso matar também o desejo de contemplar, de alegrar-se com as próprias palavras, de alegrar o olhar. É preciso dosar virilidade e compaixão.

(p.134)

&


(...) descansei, mas no descanso também sofro dessa angústia de ser, e no escuro uma noite ME PENSEI. E vi matéria vasta, e quando digo matéria já te penso pensando na matéria em que pensas. Não é como tu pensas.

(p. 171)

[hilda hilst, "fluxo", "o unicórnio" e floema, respectivamente. tudo do fluxo-floema]