sexta-feira, 10 de outubro de 2014

fiat lux

- oi, r., tudo bem? aqui é d., do edifício i., tô ligando pra confirmar se você vem amanhã ver os lustres aqui de casa.
- então, não vai dar no sábado, pode ser na semana que vem? na segunda?
- mas, r., segunda mesmo, hein? eu tô cozinhando no escuro tem dez dias de tanto que a gente já adiou.

olha pro alto, pensa que tudo bem, vai ser mais uma daquelas visitas idiotas que, em três minutos, ele resolve o escuro do que virão a ser, então, duas semanas. um mau contato idiota, um encaixe que a percepção limitada não deixa entender. pensa ainda que vem outro diálogo. na segunda-feira, esperemos.

- então, r., a luz começou a pifar.
- como assim?
- sabe quando fica fazendo um barulho crrrrr [ler com o r da garganta], ela fica naquele vai-não-vai, até que pifa?
- mas você chegou a trocar as lâmpadas?
- então... não -- cara de não bom do outro lado da conversa. mas quando eu fui tentar ver se era problema da lâmpada, no que encostei no lustre, ela acendeu pra sempre.
- e tá apagada agora?
- pra sempre tipo uma semana. aí começou tudo de novo, fiz a mesma coisa. só que aí acendeu, funcionou, e fui tentar entender o que poderia ser.
- ã.
- tirei só as partes básicas, devolvi tudo -- menos aquela proteção idiota meio difícil de tirar --, ela deu mais uma piscada e apagou.
- é, talvez seja a lâmpada -- ulula o óbvio.
- mas, r., lâmpada é lâmpada, né? elas não ficam ressuscitando à vontade assim.

r. olha com uma cara de "isso já não dá pra afirmar, meu caro" e a sensação que fica é de que as certezas andam raras. pelo menos um pouco certo é que a onomatopeia, lida com o r da garganta, deve ter ressoado em pelo menos 26% das leituras, chutando baixo. um pouco de alívio.

domingo, 21 de setembro de 2014

Mas você, meu irmão, já imaginou o romance sensacional que poderemos escrever um dia sobre esta experiência bélica a que estamos sendo submetidos em pleno tempo de paz, se é que se pode chamar de paz a este estado de angústia permanente e de ódios gratuitos que marca todos os nossos passos, mesmo e sobretudo durante o sono?

[campos de carvalho, a lua vem da ásia, p. 85]

sábado, 17 de maio de 2014

Some are certain of going on loving as being existing. Some are completely certain of going on loving being existing. Some are certain about loving being about loving not being existing. Some are not certain about loving being, about loving not being existing. Some are certain about loving going on about loving not going on. Some are not certain about loving going on, about loving, not going on.

[stein, gertrude. "a long gay book" in: matisse picasso and gertrude stein with two shorter stories]

domingo, 6 de abril de 2014

do charme passadista das cartas, da angústia da espera, da expectativa que dura segundos entre ter o envelope em mãos, identificar o remetente e imaginar o que tem lá dentro, até a leitura de fato do conteúdo. as cartas estão indo embora. há quem se lamente e diga que nos tempos de antanho era melhor, mas não é o caso.

com uma ressalva talvez pra esse filão que mingumiua, o do estudo e das publicações de correspondências importantes ou, melhor ainda, das banais, que contam como tal ou tal figura proeminente tomava seu café, descrevia os hábitos de todo dia e contava os meandros da vida íntima, declarações de amor inclusas, aproximando de alguma carna(va)lidade esse pessoal que fica tão distante de qualquer concretude.

(nunca soube que o verbo minguar se conjugava desse jeito.)

viajando pensei que uma das profissões que mais se assemelha a uma penitência é a de carteiro de cidade íngreme. lisboa, são francisco, ouro preto, quem mais couber. subir e descer ladeiras e mais ladeiras, dia após dia. naquela hora parecia mais difícil que trabalhar em açougue.

pensei também que ia mandar postais pra algumas pessoas, esse hábito que sempre me desperta um pouco quando sou o alvo. escolhi as pessoas, juntei alguns endereços, escolhi os postais, alguns deles até escrevi durante a viagem. ir ao correio não consegui.

retomando essa desistência, me lembrei do geraldo, o porteiro da casa anterior, a quem eu sempre perguntava "chegou conta nova?" e ele fingia que não. lembrei de um tio, que ainda usava (bobear ainda usa) o serviço de telegrama em pleno século vinte-e-um. lembrei também das idas recentes aos correios, que se tornaram terra de ninguém, e da velha implacável e orgulhosa que cruzei na fila dia desses. lembrei ainda do recipiente de cola, cheio de acúmulos daquele líquido viscoso grudado na borda, com um pincel acoplado à tampa azul de plástico.

e aí vi que o canadá está extinguindo o seu serviço postal, cujo presidente se chama deepak chopra -- provavelmente filho de místicos desavisados que cometeram um desses atos de batismo do tipo "elvis presley duarte" que se costuma achar que é cafonice nacional exclusiva.

logo o canadá, aumentando ainda mais sua distância da frança (talvez até por isso), onde tudo se faz por um correio de lógica aparentemente mambembe, mas que funciona muito bem assim mesmo, obrigado. o mesmo canadá que não quis se deixar conhecer pela dona maria nessa primeira tentativa de ver, com os olhos a serem invariavelmente comidos pela terra, como é a qualidade de vida de um país desenvolvido.

terça-feira, 18 de março de 2014

dona maria

no meu prédio acontece de ter uma zeladora -- vá você chamá-la de porteira e provavelmente receberá uma resposta daquelas não muito educadas. foi com ela que falei pelo interfone quando encontrei o apartamento onde moro agora e ainda nem sabia que ia ser a minha casa. ela é uma personagem engraçada para além do fato de ser uma mulher em posição habitual e preconceituosamente masculina (tipo motorista de ônibus). dona maria responde o interfone à americana, sem dar nenhum tchau, talvez por falar nele várias vezes ao longo do dia. entra cedo e, nos dias úteis, larga o batente fielmente no jocoso horário de 4:20. consome meus jornais velhos com o xixi dos seus gatos, e às vezes algumas revistas também, mas estas pra ler mesmo. faz comentários pontuais sobre a movimentação do prédio, escapando alguma opinião de morador xis ou ípsilon que ela não gosta ou acha mal-educado. solta algumas pérolas como "casar? eu fui casada 20 anos, mas nunca é tarde demais pra se arrepender!". é paraense e vez em quando traz um bolinho e oferece um belisco. leitora voraz, costuma se entregar a best-sellers e ao pessoal nórdico dos romances policiais, esse filão que só cresce pós-stieg larsson.

das leituras, alguns pequenos episódios. uma vez papeamos sobre "precisamos falar sobre o kevin", que ela acreditava ser uma história real e relutou por dias em concordar que não era. outra vez, fui atender o interfone (ele, de novo) com o coração palpitando na segunda-feira, esperando bronca depois de uma festa não muito modesta em casa. do outro lado, dona maria pedia pra baixar uns e-books que não estava conseguindo encontrar de graça pra colocar no e-reader novo dela. noutra vez ainda, não necessariamente nessa ordem, dei a ela "a elegância do ouriço", que conta a história de uma gardienne (vulgo zeladora) mais esperta do que se suspeita.

na última semana, ela veio me pedir ajuda. vai pro canadá nas próximas férias, que passarão pela data do seu próximo aniversário de mais de uma mão de décadas. mas o processo de tirar o visto estava sendo extenuante, não conseguia preencher o formulário no seu computador nem com a ajuda do filho e me pediu auxílio. combinamos então um horário e ela veio, com a papelada toda e a checklist do consulado. minha pulga estava lá, atrás da orelha, e foi sendo saciada enquanto percorríamos os formulários juntos. acontece que dona maria descobriu o mundo: percebeu que as passagens aéreas podem caber no bolso e que não é nada alienígena dar um pulo em outro país. optou pelo canadá, não sei se depois de ver imagens bonitas, se por ter alguma memória de alguma maneira ligada às terras de lá ou o quê, mas pouco importa. não conhece ninguém na parte de cima da américa, tampouco fala inglês, o que tem lhe tomado cerca de três horas diárias em aulas on-line. fiquei sabendo um pouco da composição da vida e da família dela ao preencher os campos dos documentos sem fim, outro pouco da sua filosofia de vida, e encerramos, faltando alguns dados, como sempre. hoje ela trouxe o que faltava e se foi feliz da vida, toda faceira, com o pendrive em mãos e o canadá na ideia.

na minha cabeça, ainda um monte de curiosidades e outro tanto de percepções que às vezes não são das mais lisonjeiras. por que o canadá? como será que vai ser essa viagem? essas e outras questões variadas me acometem e levam a outras. estou aqui, ansioso pra saber como vai ser e o que virá ainda antes e depois dessa aventura.

vai pro mundo, dona maria, que ele é de todo mundo.

segunda-feira, 17 de março de 2014

que o mundo está cheio de água, não é nenhuma novidade. tampouco que boa parte dele se orienta justamente em relação a ela -- posições, portos, acessos, praias, petróleos, alimentos. engraçado então é que tão pouca credibilidade se dê à pesca, aos peixes, aos pescadores. puxando pelo fio das coisas recentes, vem o seguinte. primeiro ninfomaníaca, com seligman, aquele que resgata joe, traçando o paralelo da pesca quando a protagonista narra o episódio da competição quantitativa de parceiros sexuais a bordo de um trem, que dura não mais que o tempo da viagem e recompensa a vencedora com chocolates. presa e predador? não: pesca, isca, fluxos, disposições. é isso a sedução. depois, um certo trabalho que estou fazendo neste exato momento (e do qual escapo um pouco pra refrescar o cérebro com estas linhas), uma tradução cabeluda de uma revista filosófica francesa que discute o partido imaginário e se apoia no exemplo do movimento operário italiano de autonomia ocorrido em 77. logo depois de falar da comodidade do estado de tentar domesticar a técnica black bloc na forma de sujeito, um dos capítulos é aberto com esta citação, que fala por si só:

Para tentar contrariar a subversão, é necessário levar em conta três elementos distintos. Os dois primeiros constituem o alvo em si, ou seja, o Partido ou o Front e suas células e comitês de um lado e, do outro, os grupos armados que os apoiam e que são apoiados por eles. Pode-se dizer que eles constituam a cabeça e o corpo de um peixe. O terceiro elemento é a população, e isso representa a água na qual o peixe nada. O peixe muda de um lugar a outro de acordo com o tipo de água na qual foi feito para viver, e o mesmo pode ser dito das organizações subversivas. Se um peixe tem que ser destruído, ele pode ser atacado diretamente com uma vara ou rede, considerando que ele esteja numa posição que dê uma chance de sucesso a esses métodos. Mas se a vara e a rede não obtêm êxito por si só, pode vir a ser necessário fazer algo com a água que force o peixe para uma posição onde ele possa ser capturado. É concebível que seja necessário poluir a água para matar o peixe, mas é pouco provável que essa seja uma linha de ação desejável.

[frank kitson, low intensity operations: subversion, insurgency and peacekeeping, 1971]

a ela se segue justamente de um trecho desta música, que data da mesma época e fala do conflito de que trata o texto. data também dos tempos pré-conflito do meu casamento, que o (cônjuge, parceiro, namorado?) cantava alegre de olhos fechados, sorriso na cara e bradando fiiiiiiii, fi-fiiiiiiii afiadíssimo acompanhando o piano da canção, compondo uma dessas lembranças que não vão embora e fazem bem de não ir. esse que cantava era nascido precisamente sob o signo de peixes, que também é o meu ascendente e que é associado à constelação de pisces, que dizem ser, na mitologia, a representação do laço entre vênus e seu filho cupido quando se jogam na água em forma de animal para fugir do gigante tífon. um assunto que também deixaria desfiar muitas coisas mais, mas esse nado não pode acontecer agora por motivo de tempo curto e ignorância.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Mas a memória não me deixa mais amar, compreendes? Tudo termina e fica muito para memorizar. Será possível que nada te desmancha, será que não és capaz de te deitares aqui comigo, sôbre a colina? Calada. Vem, gazela fina de olhinhos côr de maravilha, vem.
(p. 43)

Goi, goi, pai coração de boi, pão pão Joana de Ruão, goi, goi, o pai não sabe o que dentro de mim é, eu sou três, perfeito querubim com o buraco da mãe e o mais comprido do pai, eu sou criança de muito entendimento, de muita verdade, de muita poesia, é preciso mastigar o que o pai escreve, mastigar e engolir porque o que vale é a poesia e não tratados, fantasmagorias do pai, o que vale é a planície doirada, o vale côr de beterraba, o que vale é o três dentro de mim, noiteaurora, pombamora, branco e vermelho dentro de mim, pai tristeza que não me quer querubim, mãe encantada do pai e por isso afligida e surprêsa em relação a mim, goi goi alecrim, goi goi espigão, goi goi roseiral-mirim.

(p. 45)

Senhores, eis aqui, um nada, um merda neste tempo de luta, enquanto nos despimos, enquanto caminhamos pelas ruas carregando no peito um grito enorme, enquanto nos matam, sim porque nos matam a cada dia, um merda escreve sôbre o que o angustia, e é por causa dêsses merdas, dêsses subjetivos do baralho, dêsses que lutam pela própria tripa, essa tripa de vidro delicada, que nós estamos aqui mas chega, chega, morte à palavra dêsses anêmicos do século, êsses enrolados que se dizem com Deus, Deus é esse ferro frio agora na tua mão, quente ao peito do teu inimigo, Deus é essa bala, olhem bem, Deus é um fogo que vai queimar essas gargantas brancas, Deus é tu mesmo, homem, tu é que vais dispor do outro que te engole, e quem é que te engole, homem?

(p. 55)

Escrever um livro é como pegar na enxada, e se você não tem uma excelente reserva de energia, você não consegue mais do que algumas páginas, isto é, mais do que dois ou três golpes de enxada. Por isso, nessa hora de escrever é preciso matar certas doçuras, é preciso matar também o desejo de contemplar, de alegrar-se com as próprias palavras, de alegrar o olhar. É preciso dosar virilidade e compaixão.

(p.134)

&


(...) descansei, mas no descanso também sofro dessa angústia de ser, e no escuro uma noite ME PENSEI. E vi matéria vasta, e quando digo matéria já te penso pensando na matéria em que pensas. Não é como tu pensas.

(p. 171)

[hilda hilst, "fluxo", "o unicórnio" e floema, respectivamente. tudo do fluxo-floema]