terça-feira, 15 de novembro de 2011

vó vitória aka
bergamota

vitória era mãe da teresa (que já passou por aqui uma, duas vezes) e, portanto, minha bisavó. alguém que poderia ser chamada de plácida.

apesar de sua posição na hierarquia genética, não tinha a alcunha de bisa. pelo menos não pra mim, que acho essa redução um quê pobre. por isso, ou talvez por nada disso, era chamada simplesmente de vó vitória.

centro de convergência familiar, ela era, ao mesmo tempo, um poço de serenidade e sabedoria, e também, de certo modo, uma criança das mais educadas. isso fazia dela conselheira das agruras dos variados patamares familiares com seu sotaque que enrolava os eles, numa certa evocação lusitana, e objeto de cuidados os mais precisos, como era o caso das refeições em bandejas, sempre respeitando seu ritmo de lentidão apreciável.

não raro se chegava ao quarto e lá estava ela, sentada diante da televisão, dando as clássicas pescadas senis durante a novela. nada fora do habitual, mas motivo claro de embaraço entre os idosos, que dormem com facilidade e dificilmente o assumem. uns passos mais espalhafatosos e a pergunta em alto e bom som -- tava dormindo, vó? -- eram respondidos com um não, absolutamente, estava só descansando a vista.

e então chegava a bandeja, cujos conteúdos suportados me escapam, mas sempre contendo uma fruta. a maçã era descascada com delicadeza, liberta da casca que às vezes se infiltra por entre os dentes e do miolo que mostra o trabalho sexual da natureza, por mais que suas estruturas não tenham mucosas e circulações sanguíneas. dessa maçã nua ela, com uma faca precisa, tirava não pedaços, mas sim lâminas, verdadeiras hóstias adocicadas.

no entanto, ascese mesmo eram as mexericas. sem pressa alguma, ela desmontava a fruta respeitando sua lógica de degustação. os gomos, destituídos dos fiapos maiores e mais grossos, como é de praxe, não viam encerrados aí seus cuidados. a película que agremia os tantos gominhos que formam a subunidade gomo, era retirada com todo cuidado, pra não desvencilhar nenhuma dessas partes menores tão bem encaixadas. qual uma criança que tira a tampa da bolacha recheada pra se deleitar com uma porção mais generosa de gordura trans, mas com o adendo da sabedoria da idade, que reconhece o valor de uma tangerina ante uma bono.

disso resultava uma verdadeira obra-prima frugal: um aglomerado de gominhos, sem a uniformidade do véu que lhes cobre originalmente, mas de cor muito mais viva, denunciando a suculência de cada uma dessas pequenas partes que provocam uma avalanche, uma inundação das papilas gustativas, feito que só essa fruta invernal (talvez por isso) é capaz de realizar, sintetizando sem igual o gosto e a sensação do verão.


ela, então, vendo os olhos que cobiçavam o fruto do seu trabalho concentrado, esticava a faca com o gomo desnudado e desnudava-se, ela também, de qualquer egoísmo que pudesse ter com sua refeição.

sábado, 12 de novembro de 2011

numa fase sem títulos nem parágrafos aka
ela

ela chegou de repente, de volta de um ano longe. conhecer mesmo, até então eu não conhecia, pode-se dizer que só de vista. mas era uma presença dessas que se diz ter "brilho". sim, é uma definição bem cafona, mas não há o que descreva melhor. a beleza e a leveza seduziam a atenção, o jeito desenrolado acrescentava charme, mais do que suficiente pra criar uma dessas amizades unilaterais que eu tenho hábito. daí houve o ano de intervalo, informação que eu só teria muito tempo depois. e, com essa volta, passaram a existir algumas compatibilidades de horário, algumas coexistências, uma presença mais firme, uma troca de uma ou outra palavra, comentários amenos. até que um dia pegamos o mesmo transporte público, com destinos levemente diferentes, saindo do mesmo ponto de partida. sentamos cada qual num lugar, separados, com o ônibus ainda vazio. à medida que íamos avançando no percurso, o ônibus foi se enchendo até ficar insuportável, depois se esvaziando e enchendo de novo, um fluxo conhecido pelos passageiros de longa data. chegado o momento da descida, ela foi se locomovendo rumo à porta de saída com antecedência calculada e, no meio do corredor, provavelmente por causa de alguma freada ou de um golpe da inércia que nos acomete durante as curvas, acabou pisando no pé de uma senhora. nem é preciso dizer que intenção não houve, o que não torna o pisão mais agradável a quem o recebe. desculpou-se, com a simpatia que lhe é característica, e recebeu de volta não só a cara fechada desse tipo de vítima, mas também uma série de agressões verbais, um falatório nervoso sem fim que não tinha quê nem por quê. ela, sem ceder ao impulso de responder na mesma moeda, desculpou-se mais uma vez e, sorriso no rosto, desejou um ótimo dia à senhora ranzinza. esta, provavelmente se sentindo então vítima de cinismo, nunca mais fechou a porteira da reclamação. sem fazer-se de rogada, ela, cujo momento de descida finalmente tinha chegado, desceu e, do lado de fora, foi atravessando a rua de costas e mandando beijos, desejando felicidades sinceras à senhora amarga. depois disso, não tinha mais como não ser.