terça-feira, 15 de outubro de 2013

Às vezes dá vontade de escrever com maiúsculas. Até que você vê como vai ficando o relevo do texto e pensa: "Será mesmo?" Deixa tentar mais um pouco. acaba que sempre acha melhor não.

(...)

melville talvez explique. bartleby talvez melhor ainda.

domingo, 29 de setembro de 2013

rajada

acho que nunca falei aqui sobre os meus lapsos musicais. eles acontecem mais ou menos assim: uma música me acomete, de ficar cantarolando sem controlar bem onde estou fazendo isso. a cantoria sai, espontânea. de repente, segurando o regador e papeando com as plantas, ou colocando o tênis pra sair de casa. qualquer situação das mais prosaicas acaba sendo infestada pelo significado da letra e eu me percebo como em capa de revista que vende mulheres em posição de vulnerabilidade por questões ditas mercadológicas: me surpreendo nu. peladinho. tudo o que diz a letra diz o que acontece dentro da minha cabeça, essa que eu sei tão pouco pôr pra fora, mas que sobe à superfície num transbordo incontrolável e aparentemente inofensivo. as pessoas nos arredores não costumam se dar conta de toda essa exposição, e eu lá, rugindo e rougindo, um misto de voracidade e vergonha infantil.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

derramamento de ignorância

finalmente vi o vídeo e quis escrever um gole. é tão raro ter tempo e vontade em confluência espontânea que não há como frear.

fiquei a princípio decepcionado de ter perdido ao vivo, mas resta a expectativa de outras apresentações. a lacuna se deve a fatores os mais distintos, alguma politicagem até, mas seu trabalho de captação foi bem competente, o suficiente pra resolver isso em partes. aconteceu então que me senti atônito, mais ou menos na altura do diafragma. e o que vem é a percepção crua e um tanto ignorante que grudou, (mal) organizada na medida em que as ideias permitem.

as pessoas vão, depois vêm, depois vão e vêm, depois começam a interagir, depois em círculo, tudo isso acompanhado de um crescendo no som, na luz, no gesto. isso foi me dando uma angústia, um perfume (que talvez seja só cheiro mesmo) de rotina. me fez pensar bastante nesta outra dança, de que já falamos e que me arrebatou na mesma medida. a afinidade é clara.

emoldurando, o figurino simples e direto. consegue ficar em segundo plano sem sumir, ser colorido sem pesar a mão na cor e, mais importante, deixa dançar também o suor, que me é tão caro. acho que é isso que faz mais diferença pra mim do clássico ao contemporâneo. saem as sapatilhas de ponta que massacram os pés, os figurinos pomposos, o cenário grandiloquente, a busca maquiada do gesto perfeito e distante do cotidiano. entram a roupa de todo dia, o ambiente minimalista, os movimentos mais desprendidos do conceito de beleza clássica, o suor que sai da virilha sovaco peito cu pernas rosto couro cabeludo.

da secreção, a etimologia já diz: "separação (das partes), dissolução". é o resultado daquilo que se faz, daquilo que se perde, do ponto de vista mais prático ao mais abstrato, e ela não pode ser ignorada. dançar com o suor conta o esforço envolvido ali, o domínio de corpo, além de agregar ao que é narrado na dança, ao que acontece no palco.

e quando começam a soar os pratos, a coisa fica tão linda. vão nascendo umas simultaneidades embaralhadas, em lampejos, o mais puro reflexo da era do excesso de informação. foi esse elemento que me deu o clique da dança, assistindo isto dois anos atrás. as coisas acontecem aqui, ali, de repente do outro lado, um cruzamento conecta dois ou mais bailarinos, que continuam cada um no seu rumo. não tem mais jeito, não dá pra ver tudo. há que se fazer escolhas, até aí.

então vira uma convivência. os tropeços, apoios e atiramentos deixam fazer tantas leituras que não cabe tentar desenvolver aqui. os protagonismos vão mudando ao sabor do olhar e do desespero de apreender tudo. é isso, é assim, é o tempo todo, cada hora uma coisa puxa de um lado, interage de uma forma. a única maneira é ir lidando com todas elas como vêm.

e é nisso que a dança tem me pinçado. saber veicular tanta coisa com o corpo é de uma clareza tão grande de si que faz toda diferença. sinto vontade de dançar pro mundo como danço quando estou absolutamente sozinho em casa, de aprimorar isso, de entender a técnica que existe por trás pra poder brincar com ela. mas, de novo, é tanto com que lidar que esse front talvez precise esperar um bocado. arquiteto pra que não demore muito.

me despeço suado.

domingo, 25 de agosto de 2013

da série: belos nós

In having meaning, in expecting realisation, in deserting wearying, in exhausting attending, in loving insisting, in embarking anything, in continuing meaning, in persisting working, in hoping having been realising, in urging continuous hoping, in longing for existing, in hearing encouraging, in desolating what is waiting, in returning what has been being the ridiculous part of everything, in remembering all of conquering that has meaning, in straining all of selling that has buying, in operating all the desolation that has repeating, in all that is and was these who were and came were the ones who are when they stay and do not remain where they will be, these were the ones who are when they are and they are when they are as they had when they had what they had because they did not have what they could have since they did not have all they did have as they were when they are.

[gertrude stein, g.m.p.]

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

apresenta a jazzband. não. toca blues com ela.

são duas horas da manhã de quinta pra sexta e estou tendo o que parece ser uma lufada de comunicação. acabo de pré-acabar um trabalho de médio porte e que tenho achado importante nos caminhos novos. junto com isso do ponto final que é mesmo final num texto, vem a sensação de dever cumprido, a gota de suor da lida que escorre e a vontade de exteriorizar esse prazer. beber um golinho, com a ressaca que me acometeu no dia de hoje, não é possível. puxar conversa furada na internet? nããã.

fiz então uso do meu dispositivo de relaxamento da percepção e peguei um livro que acabei de comprar. o livro é dessas edições esgotadas (por que se comportar assim, editoras? façam-me o favor!) que passam a custar uma pequena fortuna na estante virtual, mas encontrei uma em condições boas e preço idem, justo. acontece também de ser um dos meus títulos favoritos, e só eu sei o quanto tenho dificuldade em autenticar um volume com esse carimbo do favoritismo, tão cheio de expectativas e frustrações. mas a ana c. consegue ser de uma pungência e de uma delicadeza que ainda não encontrei em lugar algum.

pois. justamente por isso é uma poeta que eu sempre entrego de bandeja pra quem eu gosto muito, quando estou justamente na fase do gostar muito. isso não se restringe a casos afetivos e sexuais, que fique claro, mas eventualmente se repete nesse ponto. tanto que é meu terceiro ou quarto livro desses, os anteriores foram dados ao léu.

percorrendo as primeiras páginas, caí justamente no verso que você usou na nossa brincadeira de títulos de e-mail. essa mesma exata correspondência eu por acaso reli dia desses enquanto buscava a versão perfeita de uma música da nara, que lembrava ter recebido de você, nessa nossa outra brincadeira de sempre colocar uma música nova no fim da mensagem.

é bastante coincidência num período curto, me parece. o suficiente pra te escrever estas linhas. me lembra também que outro dia nos desencontramos num evento social, por bem pouco. eu tinha saído justamente com o pessoal responsável pelo que você tinha ido ver e, quando estava de volta, você já tinha ido embora.

fica então dado este sorriso, e mais esta brincadeira.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

pensamento pornô


Não há devassidão maior que o pensamento.
Essa diabrura prolifera como erva daninha
num canteiro demarcado para margaridas.

Para aqueles que pensam, nada é sagrado.
O topete de chamar as coisas pelos nomes,
a dissolução da análise, a impudicícia da síntese,
a perseguição selvagem e debochada dos fatos nus,
o tatear indecente de temas delicados,
a desova das ideias – é disso que eles gostam.

À luz do dia ou na escuridão da noite
se juntam aos pares, triângulos e círculos.
Pouco importa ali o sexo e a idade dos parceiros.
Seus olhos brilham, as faces queimam.
Um amigo desvirtua o outro.
Filhas depravadas degeneram o pai.
O irmão leva a irmã mais nova para o mau caminho.

Preferem o sabor de outros frutos
da árvore proibida do conhecimento
do que os traseiros rosados das revistas ilustradas,
toda essa pornografia na verdade simplória.
Os livros que os divertem não têm figuras.
A única variedade são certas frases
marcadas com a unha ou com o lápis.

É chocante em que posições,
com que escandalosa simplicidade
um intelecto emprenha o outro!
Tais posições nem o Kamasutra conhece.

Durante esses encontros só o chá ferve.
As pessoas sentam nas cadeiras, movem os lábios.
Cada qual coloca sua própria perna uma sobre a outra.
Dessa maneira um pé toca o chão,
o outro balança livremente no ar.
Só de vez em quando alguém se levanta,
se aproxima da janela
e pela fresta da cortina
espia a rua.

[opinião sobre a pornografia, wislawa szymborska]

quarta-feira, 17 de abril de 2013


quando a cássia eller morreu, eu estava na sua casa. com você, claro. sua família tinha feito uma viagem curta, pra perto. no afã de dar continuidade a uma tensão sexual adolescente que só crescia, demos mais um passo decisivo rumo à pederastia. a boa e velha boiolagem correu solta na sua cama de solteiro e, não sei bem como, foi parar no tapete do corredor.

claro que, fôlego em falta, toca o telefone e a trupe anuncia a volta pra casa. eu nunca mais encontrei aquele pé de meia perdido, mas você não deve ter tido dificuldades em alegar que fosse de algum dos seus irmãos. saí correndo, de inocência balançada e um pé com probabilidade maior de desenvolver mau cheiro devido ao contato da sola direto com a palmilha.

[encerra o diálogo com você, começa o diálogo comigo]

mas, mais importante do que esses primeiros episódios da minha educação sexual, será que isso foi mesmo no dia da morte da cássia eller? eu tinha quase certeza e fui conferir quando o fato se deu: 29 de dezembro de 2001, afirma a internet. será possível que tudo isso tenha acontecido às vésperas do ano novo, única semana com grandes chances de estar viajando ou coisa parecida?

fiquei intrigado. se não aconteceu assim, por que minha memória fez isso? e, se ela fez isso com esse fragmento de lembrança, quem garante que ela também não bagunçou essa brincadeira de fluidos? ou pior: a quantas anda essa modificação deliberada de todas as minhas lembranças?

o eu do passado, o eu do presente e o eu da narrativa -- é gente demais pra confiar nos arquivos de uma única caixa craniana.

[em tempo: não sou particularmente fã da cássia eller.]

segunda-feira, 25 de março de 2013

quando eu morrer, quero que doem tudo o que ainda for doável dentro de mim. e que me transformem em pó, pra ser jogado em destino ainda indefinido. a trilha sonora do processo de cremação ainda está sendo trabalhada.

segunda-feira, 11 de março de 2013


era pra ser privado, acabou virando público aka
compartilhando os relances com quem é de direito aka
às vezes me falta tato

duas coisas.

ontem eu estava assistindo o documentário sobre o raul seixas (que é bem bom, aliás). além da obviedade de ser o nome da sua cria número dois (sempre achei meio legal o sílvio santos numerar as filhas), aparece um maluco que deu pro filho o nome de raul seixas etc. fiquei pensando em você e nessa pelotinha linda que, acabei de ver nas redes sociais, soltou a primeira frase dia desses!

daí hoje fui ver uma peça do nelson baskerville. sabe o nelson baskerville? eu não sabia, mas pelo tom que imprimiam ao nome dele, eu deveria saber, e o google imagens me mostrou que ele é um cara desses do teatro que eu até sei a cara, mas jamais saberia o nome. a peça não era lá muito boa, mas o que importa é que tinha uma atriz que eu também não sei qual é que tinha um tanto a sua cara. quando ela aparecia, era bem você ali.

(...)

uma breve correção, como quem joga mais algumas batatas pra sugar da carne o excesso de sal que, por um descuido de pitadas e colheres e tempos de cocção, deixou o prato bem longe da insipidez. uma tentativa que não costuma dar certo, mas será que desta vez...?

pensei no seu filho por causa de um maluco e lembrei também da nada elogiosa técnica de numeração de filhas do senor abravanel, depois ainda te reconheci em uma peça ruim. francamente. não são essas partes esquisitas que eu colei nas lembranças, nunca é demais lembrar.

(...)

que saudade. vai saber o que tem amanhã, né? por aqui tudo anda bem, mas isso é pra pessoalmente.

um beijo,

sábado, 9 de fevereiro de 2013

logo que você adormeceu, um descarrego de espasmos te percorreu de cima abaixo. foi algo meio ritmado: primeiro uma perna, depois a outra, subiu pra região da barriga, um braço de cada vez, até que desceu tudo de novo e essas contrações involuntárias ficaram indo e vindo em locais alternados, como se escapassem de qualquer lógica. falando assim, parece ataque epiléptico, mas na verdade tudo acontecia um pouco mais lento. era como se seu corpo, depois de se entregar ao véu do sono em tempo recorde, dançasse um coltrane da fase mais tresloucada -- não sou um bom acompanhador do coltrane, não sei dizer de qual álbum estou falando.

isso me levou a pensar na questão da assertividade e, logo, no problema decorrente, o dos panos quentes. na superfície tudo sempre passa por um esforço até ficar apresentável. quando alguém pergunta um trivial "tudo bem?", é raro a resposta fugir da curva. um ar de sorriso no rosto, a cordialidade padrão com funcionários de estabelecimentos... tem gente que faz isso mais, tem gente que faz isso menos. pode ser algo que se aprenda, talvez até algo que se medique, ou talvez nada disso. só achei curioso, porque é uma questão que me bota pra matutar às vezes.


o episódio me trouxe também coisas que acontecem a todo mundo e nunca são ditas (os espasmos, o cocô da ressaca, os dentes de filhotes de cachorro, que caem como os dos humanos etc.), e esta dança aqui embaixo.



sábado, 19 de janeiro de 2013

origem é importante aka
devaneios etimológicos

por um momento, achei que trair e distrair tivessem a mesma raiz etimológica. me enganei. não só o substantivo é "distração" (e não "distraição"), como também o "dis-" não é um prefixo, e sim uma forma consolidada do vocábulo latino que deu origem ao termo. de repente, me deu um alívio.

ainda assim, fica me martelando se não seria possível que, ao distrair-se -- então considerando o caráter psicanalítico e, consequentemente, imputável ao sujeito de toda e qualquer distração --, não se operaria a dissolução, separação ou até enfraquecimento de uma traição em porções menores, como sugere essa falsa origem que me ocorreu da palavra?

a distração, afinal, não é muito distante de um ato falho (ou "escorregão freudiano", como dizem espirituosos os americanos, em tradução mambembe), uma pequena negligência aparentemente desarrazoada. como se, a golpes diminutos ou até homeopáticos, todos esses acasos de traição do comportamento esperado manifestassem aquilo que se costuma sufocar em si.

um pai que esquece o filho no carro. servir uma bebida gaseificada e esquecer-se dela, pululando suas bolinhas até perder essa característica primeira. deixar o ferro ligado, a vela acesa, o gás aberto. esquecer um aniversário, uma data importante ou o vencimento de uma conta. só alguns exemplos.

talvez não no nível mais banal ou raso (respectivamente: inaptidão à paternidade; falta de vontade concreta ou má vontade, se for para servir um próximo; querer botar tudo abaixo, transformar em cinzas; demonstrar a indiferença sentida em relação ao fato ou pessoa celebrado, e assim por diante.). mas prefiro pensar que a minha interpretação errada seja de fato uma possibilidade, como se dissesse, a cada pequeneza dessas, "às favas tudo isso".

daí também a questão de origem, época, domínio. neste caso, das palavras, mas que se expande a tudo com que se pode relacionar. até a procedência, disponibilidade e preço dos legumes.