no meu prédio acontece de ter uma zeladora -- vá você chamá-la de porteira e provavelmente receberá uma resposta daquelas não muito educadas. foi com ela que falei pelo interfone quando encontrei o apartamento onde moro agora e ainda nem sabia que ia ser a minha casa. ela é uma personagem engraçada para além do fato de ser uma mulher em posição habitual e preconceituosamente masculina (tipo motorista de ônibus). dona maria responde o interfone à americana, sem dar nenhum tchau, talvez por falar nele várias vezes ao longo do dia. entra cedo e, nos dias úteis, larga o batente fielmente no jocoso horário de 4:20. consome meus jornais velhos com o xixi dos seus gatos, e às vezes algumas revistas também, mas estas pra ler mesmo. faz comentários pontuais sobre a movimentação do prédio, escapando alguma opinião de morador xis ou ípsilon que ela não gosta ou acha mal-educado. solta algumas pérolas como "casar? eu fui casada 20 anos, mas nunca é tarde demais pra se arrepender!". é paraense e vez em quando traz um bolinho e oferece um belisco. leitora voraz, costuma se entregar a best-sellers e ao pessoal nórdico dos romances policiais, esse filão que só cresce pós-stieg larsson.
das leituras, alguns pequenos episódios. uma vez papeamos sobre "precisamos falar sobre o kevin", que ela acreditava ser uma história real e relutou por dias em concordar que não era. outra vez, fui atender o interfone (ele, de novo) com o coração palpitando na segunda-feira, esperando bronca depois de uma festa não muito modesta em casa. do outro lado, dona maria pedia pra baixar uns e-books que não estava conseguindo encontrar de graça pra colocar no e-reader novo dela. noutra vez ainda, não necessariamente nessa ordem, dei a ela "a elegância do ouriço", que conta a história de uma gardienne (vulgo zeladora) mais esperta do que se suspeita.
na última semana, ela veio me pedir ajuda. vai pro canadá nas próximas férias, que passarão pela data do seu próximo aniversário de mais de uma mão de décadas. mas o processo de tirar o visto estava sendo extenuante, não conseguia preencher o formulário no seu computador nem com a ajuda do filho e me pediu auxílio. combinamos então um horário e ela veio, com a papelada toda e a checklist do consulado. minha pulga estava lá, atrás da orelha, e foi sendo saciada enquanto percorríamos os formulários juntos. acontece que dona maria descobriu o mundo: percebeu que as passagens aéreas podem caber no bolso e que não é nada alienígena dar um pulo em outro país. optou pelo canadá, não sei se depois de ver imagens bonitas, se por ter alguma memória de alguma maneira ligada às terras de lá ou o quê, mas pouco importa. não conhece ninguém na parte de cima da américa, tampouco fala inglês, o que tem lhe tomado cerca de três horas diárias em aulas on-line. fiquei sabendo um pouco da composição da vida e da família dela ao preencher os campos dos documentos sem fim, outro pouco da sua filosofia de vida, e encerramos, faltando alguns dados, como sempre. hoje ela trouxe o que faltava e se foi feliz da vida, toda faceira, com o pendrive em mãos e o canadá na ideia.
na minha cabeça, ainda um monte de curiosidades e outro tanto de percepções que às vezes não são das mais lisonjeiras. por que o canadá? como será que vai ser essa viagem? essas e outras questões variadas me acometem e levam a outras. estou aqui, ansioso pra saber como vai ser e o que virá ainda antes e depois dessa aventura.
vai pro mundo, dona maria, que ele é de todo mundo.
terça-feira, 18 de março de 2014
segunda-feira, 17 de março de 2014
que o mundo está cheio de água, não é nenhuma novidade. tampouco que boa parte dele se orienta justamente em relação a ela -- posições, portos, acessos, praias, petróleos, alimentos. engraçado então é que tão pouca credibilidade se dê à pesca, aos peixes, aos pescadores. puxando pelo fio das coisas recentes, vem o seguinte. primeiro ninfomaníaca, com seligman, aquele que resgata joe, traçando o paralelo da pesca quando a protagonista narra o episódio da competição quantitativa de parceiros sexuais a bordo de um trem, que dura não mais que o tempo da viagem e recompensa a vencedora com chocolates. presa e predador? não: pesca, isca, fluxos, disposições. é isso a sedução. depois, um certo trabalho que estou fazendo neste exato momento (e do qual escapo um pouco pra refrescar o cérebro com estas linhas), uma tradução cabeluda de uma revista filosófica francesa que discute o partido imaginário e se apoia no exemplo do movimento operário italiano de autonomia ocorrido em 77. logo depois de falar da comodidade do estado de tentar domesticar a técnica black bloc na forma de sujeito, um dos capítulos é aberto com esta citação, que fala por si só:
Para tentar contrariar a subversão, é necessário levar em conta três elementos distintos. Os dois primeiros constituem o alvo em si, ou seja, o Partido ou o Front e suas células e comitês de um lado e, do outro, os grupos armados que os apoiam e que são apoiados por eles. Pode-se dizer que eles constituam a cabeça e o corpo de um peixe. O terceiro elemento é a população, e isso representa a água na qual o peixe nada. O peixe muda de um lugar a outro de acordo com o tipo de água na qual foi feito para viver, e o mesmo pode ser dito das organizações subversivas. Se um peixe tem que ser destruído, ele pode ser atacado diretamente com uma vara ou rede, considerando que ele esteja numa posição que dê uma chance de sucesso a esses métodos. Mas se a vara e a rede não obtêm êxito por si só, pode vir a ser necessário fazer algo com a água que force o peixe para uma posição onde ele possa ser capturado. É concebível que seja necessário poluir a água para matar o peixe, mas é pouco provável que essa seja uma linha de ação desejável.
[frank kitson, low intensity operations: subversion, insurgency and peacekeeping, 1971]
a ela se segue justamente de um trecho desta música, que data da mesma época e fala do conflito de que trata o texto. data também dos tempos pré-conflito do meu casamento, que o (cônjuge, parceiro, namorado?) cantava alegre de olhos fechados, sorriso na cara e bradando fiiiiiiii, fi-fiiiiiiii afiadíssimo acompanhando o piano da canção, compondo uma dessas lembranças que não vão embora e fazem bem de não ir. esse que cantava era nascido precisamente sob o signo de peixes, que também é o meu ascendente e que é associado à constelação de pisces, que dizem ser, na mitologia, a representação do laço entre vênus e seu filho cupido quando se jogam na água em forma de animal para fugir do gigante tífon. um assunto que também deixaria desfiar muitas coisas mais, mas esse nado não pode acontecer agora por motivo de tempo curto e ignorância.
Para tentar contrariar a subversão, é necessário levar em conta três elementos distintos. Os dois primeiros constituem o alvo em si, ou seja, o Partido ou o Front e suas células e comitês de um lado e, do outro, os grupos armados que os apoiam e que são apoiados por eles. Pode-se dizer que eles constituam a cabeça e o corpo de um peixe. O terceiro elemento é a população, e isso representa a água na qual o peixe nada. O peixe muda de um lugar a outro de acordo com o tipo de água na qual foi feito para viver, e o mesmo pode ser dito das organizações subversivas. Se um peixe tem que ser destruído, ele pode ser atacado diretamente com uma vara ou rede, considerando que ele esteja numa posição que dê uma chance de sucesso a esses métodos. Mas se a vara e a rede não obtêm êxito por si só, pode vir a ser necessário fazer algo com a água que force o peixe para uma posição onde ele possa ser capturado. É concebível que seja necessário poluir a água para matar o peixe, mas é pouco provável que essa seja uma linha de ação desejável.
[frank kitson, low intensity operations: subversion, insurgency and peacekeeping, 1971]
a ela se segue justamente de um trecho desta música, que data da mesma época e fala do conflito de que trata o texto. data também dos tempos pré-conflito do meu casamento, que o (cônjuge, parceiro, namorado?) cantava alegre de olhos fechados, sorriso na cara e bradando fiiiiiiii, fi-fiiiiiiii afiadíssimo acompanhando o piano da canção, compondo uma dessas lembranças que não vão embora e fazem bem de não ir. esse que cantava era nascido precisamente sob o signo de peixes, que também é o meu ascendente e que é associado à constelação de pisces, que dizem ser, na mitologia, a representação do laço entre vênus e seu filho cupido quando se jogam na água em forma de animal para fugir do gigante tífon. um assunto que também deixaria desfiar muitas coisas mais, mas esse nado não pode acontecer agora por motivo de tempo curto e ignorância.
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