Chamava-se Málaga. Porque o pai, apaixonado pela Espanha, achou que essa era uma ótima idéia. Assim foi. Mas convenhamos que uma criancinha que mal tem traços, jamais pode ter cara de Málaga. E foi com esse estranhamento que ela veio ao mundo.
Aos oito anos, Málaga comia terra. Mãos e mãos cheias que ela enfiava na boca, cheia de gosto. E ainda fazia chacota de seus coleguinhas que comiam borracha. Málaga, aliás, era a dona da segunda série. Sendo a última da fila por ordem de altura, ela tinha uma série de seguidoras-mirins e estabelecia, do alto de seus um metro e bem pouco, quem eram as infelizes destinadas a bater corda, aquelas que teriam de trabalhar enquanto as outras simplesmente se divertiam pulando às suas custas. Depois de liderar alguns motins, ela foi mudada de escola. Três vezes.
Aos dez detestava o nome. Porque, com tal idade, é difícil se aprofundar em sentimento a ponto de odiar. Mas ela chegou bem perto, perceberia depois. Afinal de contas, um nome cuja corruptela imediata é 'mala' é algo desagradabilíssimo, especialmente na época em que os sutiãs começam a ganhar lugar nas gavetas – a mesma época desagradável em que as mulheres são “muito” maiores em estatura do que os homens.
Quando tinha por volta de doze, sonhava com a Disney. Naquela época, a realidade maquiada era menos infalível e o Mickey tinha zíper nas costas. O Schwarzenegger não era flácido nem governador nem tinha tantas letras duplicadas no nome. Aliás, ela adorava os Estados Unidos e o american way of life. Não havia muito desse desrespeito incutido que, atualmente, muitos nutrem por consenso geral. Viria a pensar, numa dessas retrospectivas que se faz aos vinte-e-sete anos, que, se existissem no seu tempo, moletons Hard Rock ou Planet Hollywood seriam o regozijo da pré-adolescência.
Aos catorze anos, nutrindo sua paixão não-sabida por Humphrey Bogart e ainda conflitante com o nome, decidiu que queria ser uma cidade ou estado norte-americanos: Dakota desistiu aos treze, nome de travesti; Virgínia desistiu aos catorze, nome de vó; Filadélfia desistiu rápido, nem deu tempo; e Carolina - esse último durou até os dezesseis. Também fazia aulas de jazz, com aquela camiseta cinza cortada caindo pelos ombros e a infalível polaina preta, da qual só foi se desfazer dia desses.
Com dezesseis juvenis anos nas costas, Málaga começou a vida sexual. E começou a achar idiota querer mudar o nome, agora que era dona do próprio corpo. Nome é quase uma insignificância, não fosse seu posto de vocativo eterno, pensava ela com outras palavras. De qualquer maneira, alimentava um único pensamento: "Graças ao bom Deus que papai não era perdidamente apaixonado pela Chechênia!". E ria disso sozinha até engasgar.
Aos dezessete jamais repetiria “Graças ao bom Deus”, porque não mais acreditava na tal divindade três-em-um. Começou a ficar maliciosa que só ela e, aos dezoito, toma pra si a alcunha de Malagueta - outrora improvável, não fosse o nome peculiar. E foi nessa fase que Málaga começou a dar e a rimar com ninfeta. Dar sem sentir dó, dar sem sentir dor, dar sem sentir amor, dar sem se envolver, dar sem sentir Deus, dar sem se preocupar com o 'estar dando' - porque isso é pequenice, segundo ela. Só se preocupava com a higiene, sempre primordial.
Aos vinte, sentia o alvorecer da maturidade junto com a completude proporcionada pelas duas décadas fechadas. E o apelido do parágrafo anterior tornara-se seu assunto intocável: era só falar em 'Malagueta' que ela corava até o lóbulo – de ódio, jamais de vergonha, que fique bem claro – e xingava sem pudor. Passou a dar com rigor e fazia suas escolhas a dedo.
Aos vinte e dois enfadou-se disso tudo depois do namorado alto executivo que, ela viria a descobrir depois, fazia joint-venture de sabonete, aquele hábito nojento cultivado por algumas pessoas, que consiste em juntar o restinho dos sabonetes. Era um hábito que punha Málaga doente e que a fez concluir, com ares epifânicos, que o maior deleite feminino é abster-se da preocupação com a depilação. Passou a buscar prazer espiritual e estomacal. Incensos de quarenta centímetros, sobremesas de molhar a calcinha e pêlos nas axilas que a faziam questionar a nova convicção. Isso sem mencionar seus brinquedinhos nada ortodoxos trancafiados na última gaveta da cômoda.
Essa aliança entre Häagen-Dazs e feng-shui durou pouco, claro. Só até os vinte e quatro, idade dita decisiva por alguns. Málaga acordou para si mesma que queria uma namorada mulherzinha, após um sonho lúbrico daqueles de fazer levantar suada e exausta. Queria uma Barcelona pra deixar a piada pronta, mas contentou-se com Marília, nome de cidade do interior mesmo. Amaram-se desesperadas por dois anos. Até o dia em que Málaga, mais uma vez após alguns sonhos esclarecedores, desistiu da idéia de dedos e grelos.
Aos vinte e seis retomou a questão do nome, que tinha ficado quase esquecida nos últimos tempos. Decidiu que Málaga era um bom nome, semi-único. Nome de mulher que usa pulseiras largas de madeira que fazem um barulho engraçado ao andar. E isso fez com que se sentisse cheia de uma personalidade que a preencheu por outros dois anos, anos em que honrou as pernas que o pai, idealizador do nome, havia lhe concedido generosamente através da genética.
Aos vinte e oito entrou em crise quando, sem mais nem menos, olhando pro esmalte que secava demorado nos dedos do pé, percebeu que não tinha feito o seu primeiro milhão antes dos trinta, que já se aproximavam. Leu tudo o que pôde de Balzac e se mexeu pra ganhar dinheiro. De gerente de marketing para a América Latina a idealizadora de arte facial num bufê infantil, Málaga tinha à mão workaholics que gritavam até saltar a veia do pescoço e crianças que pediam de borboletas a ornitorrincos.
Com trinta completos e o milhão ainda distante, mandou Balzac tomar no cu. Dizendo assim mesmo, com a boca cheia e sem pormenores. Viu-se às voltas com o prazer não-sexual (agora cultural), mas também se viu precocemente velha, a ponto de não poder ter o luxo de renunciar ao sexo - postura que, olhando para trás, considerava ridícula de tão hippie. Tendo finalmente conhecido a cidade que leva seu nome (e não o contrário), Málaga tinha quase o mesmo corpo de outros tempos, não fossem os peitos alguns pares de centímetros mais abaixo. E isso a incomodava de uma maneira fora do normal.
Tendo perdido parte da paciência e portando trinta e dois anos de idade, Málaga desistiu. Além da carreira profissional, decidiu seguir secretamente o ofício de adesivo de orelhão. Imprimiu setecentos deles usando todos aqueles nomes que já tinha cogitado na adolescência. Recebia ligações variadas, fazia orçamentos camaradas falando em tom provocativo e agendava horários em locais fictícios. Percebeu que Filadélfia não faz o menor sucesso, sem sombra de dúvida.
Trinta e quatro bateram à porta e Málaga decidiu que precisava porque precisava se casar. E casou. O relógio biológico a encurralou e ela espera, com uma felicidade estranha, uma menina. Pensa em nomeá-la Málaga Júnior, que considera espirituoso até não poder mais, mas acha muita sacanagem. Imagina que se divorciará dentro de dois anos, mas, fazendo uma forcinha, espera agüentar até perto dos quarenta.
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Um comentário:
e ai ? ela morreu ? ahuahahu
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