domingo, 24 de julho de 2011

museus aka
pas de deux

um áudio-guia, senhor? não, não, obrigado, na língua que convier. é isso, o tempo de guardar as tralhas e talvez mais uma estratégica ida ao banheiro antes de desfrutar de um pouco de cultura que custa caro e, na ânsia coletiva de construir um intelecto, geralmente fica lotado de pessoas que não entendem nada (não estou me colocando fora desse grupo, que fique claro).

então, é dada a largada para um percurso de salas organizadas de acordo com a subjetividade de alguém que supostamente soube o que estava fazendo.

invariavelmente desenvolvem-se parceiros de percurso expositivo dos quais se tenta desvencilhar entrando numa sala adjacente, mas que o destino, em pleno deboche, acaba por reunir poucos momentos depois. um alento e tanto para as almas mais românticas que esperam conhecer o seu outro significativo numa ocasião assim, que envolva solidão e fruição artística.

entrando mais ou menos junto, um casal. o brilho nos olhos, a gratuidade dos sorrisos e a partilha insistente e cuidadosa de impressões e opiniões denunciava que tratava-se de um relacionamento recém-nascido, um natipouco.

uma dessas pequenas intimidades ocasionais que acontecem no elevador, na espera para que o sinal de pedestres seja favorável, nos acotovelamentos em balcões de bares com pouca mão-de-obra e preço elevado, na cumplicidade de filas de pessoas ou veículos, no esmagamento inevitável dos transportes públicos em horários concorridos e assim por diante.

sendo um casal em pleno verão de relacionamento, as expectativas orgiásticas foram reduzidas; mas sendo um museu que não valia tanto quanto se imaginava, deu mais graça ao trajeto. trajeto que, aliás, agonizava, naquele momento em que os funcionários entediados e uniformizados começam a expulsar a multidão de cáqui que finge não dar ouvidos até o último momento, quando ganha vez uma leve dose de grosseria.

nada que atrapalhasse o ritmo do par. eram dois quadros e uma entrelaçada descompromissada de mãos. mais dois passos e um queixo apoiado em ombro alheio, quase numa tentativa de partilhar a mesma visão da tela. os braços se roçavam sempre que possível, o andar em dupla era bem conjugado, um afago no braço ou nas costas acontecia de tempos em tempos.

tudo transpirando casualidade e respirando maquinações amorosas com minúcia de dança clássica das mais rígidas, que obriga a destruição dos pés e um regime quase ditatorial para fazer emergir a leveza e os corpos esculpidos com esmero das ditas bailarinas. no caso, dois bailarinos.

3 comentários:

Daniel disse...

Os espíritos selecionaram mal uma das cartas que você jogou na mesa: da que se deduz que não senti falta. Seus comentários são preciosos, o tempo, coitado, nem se esforça. E não é sintoma da mendicância.

Disparo gargalhadas com as minúcias dos atores talentosos qualquer que seja a cena: é atitude automática após reconhecer e apreciar o gozo que engendra esse artesanato - nessas breves e raras brechas ao cerne da Natureza.

Vaidade assombra a todos, mas como você não padece do mesmo mal que eu, posso ousar dizer que admiro essa sua colheita, certeira e competente, de quem conhece bem os atalhos ao fundo do próprio peito.

Seus textos me fazem rir.

flávia coelho disse...

eu ia comentar, mas o daniel me constrangeu.
por falar nisso, na tua ausência apareceu um comentador metido/ intelectual no meu blog (não sei quem é).
apesar do daniel, me encorajo... gostei mto da analogia com o paus de deux (paus dos dois), principalmente pela questão dos passos codificados no balé e formas mais ou menos fixas; igual que nóis tentando ser únicos em nossas carícias.
gostei muito dos românticos tb, aqueles bonitinhos em busca de alguém solitário como eles que curtem arte.
lindo, lindo
saudades
beijos

flávia coelho disse...

acho que ontem não deixei tão claro, o meu comentador anônimo é divertido e, na sua ausência, se fez bem interessante.