domingo, 4 de dezembro de 2011

pequena nota aka
dezenove centos, quatro vintes e dezessete e noventa e sete

o meu ano de 1997 está reduzido em texto no link que acabou de se acender coisa de doze palavras atrás. talvez seja um pouco ficcional, que a memória tem dessas coisas, mas na minha cabeça é a mais alta fidelidade.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

vó vitória aka
bergamota

vitória era mãe da teresa (que já passou por aqui uma, duas vezes) e, portanto, minha bisavó. alguém que poderia ser chamada de plácida.

apesar de sua posição na hierarquia genética, não tinha a alcunha de bisa. pelo menos não pra mim, que acho essa redução um quê pobre. por isso, ou talvez por nada disso, era chamada simplesmente de vó vitória.

centro de convergência familiar, ela era, ao mesmo tempo, um poço de serenidade e sabedoria, e também, de certo modo, uma criança das mais educadas. isso fazia dela conselheira das agruras dos variados patamares familiares com seu sotaque que enrolava os eles, numa certa evocação lusitana, e objeto de cuidados os mais precisos, como era o caso das refeições em bandejas, sempre respeitando seu ritmo de lentidão apreciável.

não raro se chegava ao quarto e lá estava ela, sentada diante da televisão, dando as clássicas pescadas senis durante a novela. nada fora do habitual, mas motivo claro de embaraço entre os idosos, que dormem com facilidade e dificilmente o assumem. uns passos mais espalhafatosos e a pergunta em alto e bom som -- tava dormindo, vó? -- eram respondidos com um não, absolutamente, estava só descansando a vista.

e então chegava a bandeja, cujos conteúdos suportados me escapam, mas sempre contendo uma fruta. a maçã era descascada com delicadeza, liberta da casca que às vezes se infiltra por entre os dentes e do miolo que mostra o trabalho sexual da natureza, por mais que suas estruturas não tenham mucosas e circulações sanguíneas. dessa maçã nua ela, com uma faca precisa, tirava não pedaços, mas sim lâminas, verdadeiras hóstias adocicadas.

no entanto, ascese mesmo eram as mexericas. sem pressa alguma, ela desmontava a fruta respeitando sua lógica de degustação. os gomos, destituídos dos fiapos maiores e mais grossos, como é de praxe, não viam encerrados aí seus cuidados. a película que agremia os tantos gominhos que formam a subunidade gomo, era retirada com todo cuidado, pra não desvencilhar nenhuma dessas partes menores tão bem encaixadas. qual uma criança que tira a tampa da bolacha recheada pra se deleitar com uma porção mais generosa de gordura trans, mas com o adendo da sabedoria da idade, que reconhece o valor de uma tangerina ante uma bono.

disso resultava uma verdadeira obra-prima frugal: um aglomerado de gominhos, sem a uniformidade do véu que lhes cobre originalmente, mas de cor muito mais viva, denunciando a suculência de cada uma dessas pequenas partes que provocam uma avalanche, uma inundação das papilas gustativas, feito que só essa fruta invernal (talvez por isso) é capaz de realizar, sintetizando sem igual o gosto e a sensação do verão.


ela, então, vendo os olhos que cobiçavam o fruto do seu trabalho concentrado, esticava a faca com o gomo desnudado e desnudava-se, ela também, de qualquer egoísmo que pudesse ter com sua refeição.

sábado, 12 de novembro de 2011

numa fase sem títulos nem parágrafos aka
ela

ela chegou de repente, de volta de um ano longe. conhecer mesmo, até então eu não conhecia, pode-se dizer que só de vista. mas era uma presença dessas que se diz ter "brilho". sim, é uma definição bem cafona, mas não há o que descreva melhor. a beleza e a leveza seduziam a atenção, o jeito desenrolado acrescentava charme, mais do que suficiente pra criar uma dessas amizades unilaterais que eu tenho hábito. daí houve o ano de intervalo, informação que eu só teria muito tempo depois. e, com essa volta, passaram a existir algumas compatibilidades de horário, algumas coexistências, uma presença mais firme, uma troca de uma ou outra palavra, comentários amenos. até que um dia pegamos o mesmo transporte público, com destinos levemente diferentes, saindo do mesmo ponto de partida. sentamos cada qual num lugar, separados, com o ônibus ainda vazio. à medida que íamos avançando no percurso, o ônibus foi se enchendo até ficar insuportável, depois se esvaziando e enchendo de novo, um fluxo conhecido pelos passageiros de longa data. chegado o momento da descida, ela foi se locomovendo rumo à porta de saída com antecedência calculada e, no meio do corredor, provavelmente por causa de alguma freada ou de um golpe da inércia que nos acomete durante as curvas, acabou pisando no pé de uma senhora. nem é preciso dizer que intenção não houve, o que não torna o pisão mais agradável a quem o recebe. desculpou-se, com a simpatia que lhe é característica, e recebeu de volta não só a cara fechada desse tipo de vítima, mas também uma série de agressões verbais, um falatório nervoso sem fim que não tinha quê nem por quê. ela, sem ceder ao impulso de responder na mesma moeda, desculpou-se mais uma vez e, sorriso no rosto, desejou um ótimo dia à senhora ranzinza. esta, provavelmente se sentindo então vítima de cinismo, nunca mais fechou a porteira da reclamação. sem fazer-se de rogada, ela, cujo momento de descida finalmente tinha chegado, desceu e, do lado de fora, foi atravessando a rua de costas e mandando beijos, desejando felicidades sinceras à senhora amarga. depois disso, não tinha mais como não ser.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

gorfo em meio a prazo delirante aka
gorfo a prazo em meio delirante

tem quase uma gestação que cheguei. o filho não saiu de dentro de mim por motivos de anatomia desfavorável, mas é como se tivesse. parece que mudou tudo e não mudou nada. no entanto não posso ser categórico coisa alguma, visto que meus referenciais de eu estão todos distantes pra eu poder fazer uma comparação -- e não me venha dizer que não, a medida mais frequente é sempre alheia. apesar disso, é bom ver que se continua a ser si próprio mesmo sozinho. indício de personalidade, diriam alguns, mas isso eu não posso dizer que tenha muito. acho mais que é a questão do eliot: "tentando aprender como empregar as palavras, e cada tentativa/ é sempre um novo começar, e uma diversa espécie de fracasso". como deu pra perceber, estou agora a escrever em blocos. acho mais justo com o encadeamento da memória que seja tudo assim, desconexo e reunido, em vez de artificialmente separado em unidades portadoras de sentido e organizadoras de ideia chamadas de parágrafos. há quem possa dizer que estou rebelde ou deprimido, mas a mim parece não fazer sentido algum nenhuma dessas possibilidades. só sei que isso aí embaixo tem cara de arnaldo antunes e que isso é questionável, mas não faz a menor diferença. dá pra dizer também que tantas, tantas voltas foram dadas só pra descobrir que o tempo tem que ser meu.

ser a si
a ser si
a si ser
assim ser

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

pro caetano aka
saudade alaranjada

O nome de gato assegura minha vigília
e morde meu pulso distraído
finjo escrever gato, digo: pupilas, focinhos
e patas emergentes. Mas onde repousa

o nome, ataque e fingimento,
estou ameaçada e repetida
e antecipada pela espreita meio adormecida
do gato que riscaste por te preceder e

perder em traços a visão contígua
de coisa que surge aos saltos
no tempo, ameaçando de morte
a própria forma ameaçada do desenho
e o gato transcrito que antes era
marca do meu rosto, garra no meu seio.

domingo, 31 de julho de 2011

jardim botânico aka
construindo a memória

me perdi por horas. a ressaca mais o senso de localização chucro me fizeram descer na estação errada, me perder à pé, andar em círculo, me perder depois de bicicleta até que, enfim, consegui chegar, com a baguete atrasada, no destino certo. o bônus ficou por conta da entrada que eu não sabia que tinha que pagar e não me cobraram -- uma mãozinha do destino, considerando que a carteira tinha nada mais do que quatro centavos. chegando lá, o jardim botânico milimetricamente planejado, flores, muitas flores de todos os tipos, em trouxinhas, em cabeleiras, tudo misturado e desordenado cheio de harmonia. no céu, um crepúsculo desses do velho continente que duram três horas, em nuances que foram do azul claro ao preto, com alguns lampejos meio rosados, durando até quase onze da noite. no palco, um quarteto de jazz com alguns convidados e acompanhado de um coral, homenageando mozart a seu modo, com direito a beatbox e uma senhora de cabelos longos de única dançarina da plateia, no último dia de um festival que eu felizmente não deixei passar. vivendo uma daquelas cenas que você tem certeza que vai estar nos flashes da memória o resto da vida, no repositório de imagens bonitas.

domingo, 24 de julho de 2011

museus aka
pas de deux

um áudio-guia, senhor? não, não, obrigado, na língua que convier. é isso, o tempo de guardar as tralhas e talvez mais uma estratégica ida ao banheiro antes de desfrutar de um pouco de cultura que custa caro e, na ânsia coletiva de construir um intelecto, geralmente fica lotado de pessoas que não entendem nada (não estou me colocando fora desse grupo, que fique claro).

então, é dada a largada para um percurso de salas organizadas de acordo com a subjetividade de alguém que supostamente soube o que estava fazendo.

invariavelmente desenvolvem-se parceiros de percurso expositivo dos quais se tenta desvencilhar entrando numa sala adjacente, mas que o destino, em pleno deboche, acaba por reunir poucos momentos depois. um alento e tanto para as almas mais românticas que esperam conhecer o seu outro significativo numa ocasião assim, que envolva solidão e fruição artística.

entrando mais ou menos junto, um casal. o brilho nos olhos, a gratuidade dos sorrisos e a partilha insistente e cuidadosa de impressões e opiniões denunciava que tratava-se de um relacionamento recém-nascido, um natipouco.

uma dessas pequenas intimidades ocasionais que acontecem no elevador, na espera para que o sinal de pedestres seja favorável, nos acotovelamentos em balcões de bares com pouca mão-de-obra e preço elevado, na cumplicidade de filas de pessoas ou veículos, no esmagamento inevitável dos transportes públicos em horários concorridos e assim por diante.

sendo um casal em pleno verão de relacionamento, as expectativas orgiásticas foram reduzidas; mas sendo um museu que não valia tanto quanto se imaginava, deu mais graça ao trajeto. trajeto que, aliás, agonizava, naquele momento em que os funcionários entediados e uniformizados começam a expulsar a multidão de cáqui que finge não dar ouvidos até o último momento, quando ganha vez uma leve dose de grosseria.

nada que atrapalhasse o ritmo do par. eram dois quadros e uma entrelaçada descompromissada de mãos. mais dois passos e um queixo apoiado em ombro alheio, quase numa tentativa de partilhar a mesma visão da tela. os braços se roçavam sempre que possível, o andar em dupla era bem conjugado, um afago no braço ou nas costas acontecia de tempos em tempos.

tudo transpirando casualidade e respirando maquinações amorosas com minúcia de dança clássica das mais rígidas, que obriga a destruição dos pés e um regime quase ditatorial para fazer emergir a leveza e os corpos esculpidos com esmero das ditas bailarinas. no caso, dois bailarinos.
brevidade aka
anonimatos

venho por meio deste sinalizar os comentários, ao mesmo tempo identificados e anônimos, deixados pelo meu corpo de leitores que não enche duas mãos. seja em época de migalhas ou vacas gordas, agradeço. e fica sempre a vontade de prolongar um pouco a prosa.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

datas aka
a poupança bamerindus não existe mais

hoje tem exatos dois anos que pisei aqui pela primeira vez, e praticamente cinco meses que tenho pisado aqui diariamente. deveria ser momento pra dizer muitas coisas mais, mas é tarde. no sentido mais de quatro da manhã, e não falando tempo que escorre pelos dedos, é bom ressaltar.

é também dia de festa por causa da chegada do verão, a mesma data que era reservada a um dos grandes ritos pagãos por séculos. a meteorologia é que parece não ter entendido isso: lá fora chove e a sensação térmica não condiz nada com esse solstício de verão que está em vias de.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

com a palavra, o pianista austríaco aka
a eterna ignorância

je n'ai jamais aimé les livres. chaque fois qu'on les ouvre, on s'attend à quelque révélation surprenante, mais chaque fois qu'on les ferme, on se sent plus découragé. d'ailleurs, il faudrait tout lire, et la vie n'y suffirait pas. mais les livres ne contiennent pas la vie; il n'en contiennent que la cendre; c'est là, je suppose, ce qu'on nomme l'expérience humaine.

ou, em (quase) bom português:

eu nunca gostei dos livros. a cada vez que os abrimos, esperamos por alguma revelação surpreendente, mas a cada vez que os fechamos, nos sentimos um pouco mais desencorajados. além disso, seria necessário ler tudo, e uma vida não bastaria para tanto. mas os livros não contêm a vida; eles contêm apenas suas cinzas; e é isso, imagino eu, o que chamamos de experiência humana.

marguerite yourcenar, "alexis ou le traité du vain combat", p. 41 (folio)

quarta-feira, 13 de abril de 2011

outro level aka
accro à pina

dia desses eu combinei com um par de pessoas e fui ao cinema assistir pina, o documentário (?) em 3d dirigido pelo win wenders sobre a tão falada coreógrafa alemã de quem eu conheço tão pouco.

a grande première foi no festival de berlim, fins do último ano, fora da competição oficial. o motivo pra essa exclusão eu vim a descobrir depois: seria covardia, como acontece com as grandes estreias de grandes diretores nos grandes festivais, cheias de grandes expectativas.

covardia porque pina é um filme lindo, à altura da personalidade a quem é dedicado. mostra a sua trupe de dançarinos-atores, com quem ela conviveu por décadas, com quem tinha uma relação que me pareceu bem intensa e, o mais bacana, dos quais ela pegava traços e expunha vivências pra compor seus espetáculos, sempre com delicadeza.

o resultado é deixar qualquer um bobo. a terceira dimensão, usada num filme sem pirotecnia, como é de praxe, dá um brilho novo à coisa toda. seu corpo de baile vai, um de cada vez, dedicando um passo, um fragmento, uma pequena dança.

e isso é tão bem feito que os espectadores saem do filme maravilhados, apaixonados por aquela que inaugurou a dança teatro, sua tanztheater. um conceito de contemporaneidade que pode fácil virar vergonha alheia, mas que, bem feito, são outros quinhentos.

depois disso tudo, me vi obrigado a conferir outro documentário, que felizmente voltou aos cartazes por ocasião do lançamento do filme de wenders. em francês se chama les rêves dansants, sur les pas de pina bausch, o original em alemão é tanzträume.

gravado em 2008, poucos meses antes dela morrer, o documentário registra os meses de trabalho com adolescentes numa montagem jovem de kontakthof, que, salvo engano, também foi montada com velhinhos, como mostra o outro documentário.

esses adolescentes descobrindo a dança, o corpo, a desinibição e muito mais do que eu posso saber é absolutamente lindo de se ver. pina, cigarrinho sempre em punho, tem uma bondade e uma cara de bem vivida, satisfeita, que dá gosto. eu chorei umas três vezes, mas não fui o único. o senhor do meu lado soluçou até onde pude acompanhar. de lavar a alma.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

durante este ano estarei despachando aqui. passa lá. (: